RESENHA: De mala e cuia: a pré-história do turismo no Brasil

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

por Leandro Domingues Duran Sobre o autor[1] Uma Pré-história do Turismo no Brasil, de autoria do historiador Haroldo Leitão Camargo, publicado pela editora Aleph em 2007, é, podemos considerar, o produto maduro e muito bem articulado de um longa trajetória profissional dedicada às temáticas do Patrimônio Histórico e da relação entre Turismo e História. Tendo obtido seu doutorado na área de História Social pela Universidade de São Paulo e atuado como historiador do Condephaat e como docente em programas de pós-graduação em Turismo, Haroldo Camargo lança mão, nesse texto, de toda sua experiência como pesquisador e de um vasto corpo documental, na busca de um objetivo inovador, qual seja: transformar a prática do turismo e as ações à ela assemelhadas em um fenômeno social passível e digno de reflexão histórica. A própria natureza do projeto já revela, por si só, os vínculos estreitos do texto com a chamada História Antropológica ou História Cultural que, iniciada por volta dos anos 30 do século XX, difundiu-se principalmente a partir dos anos 60, causando uma profunda transformação nas formas de se conceber e de produzir a História, alargando seus horizontes e suas fontes de pesquisa e criando “novos objetos” e “novas abordagens”, para utilizarmos-nos do título em português de uma obra de fulcral importância oriunda da escola francesa que tomou a frente desse movimento. Nesse sentido, não faltam as referências a autores como Lucien Fèbvre, Georges Duby, Philippe Àries, Peter Burke, e, no âmbito da historiografia nacional, à Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Luiz Felipe Alencastro, Mary Del Priori, Nicolau Sevcenko, etc. Essa associação também se revela no aspecto formal do texto que consegue conciliar uma erudição quase aristocrática que, é bom que se diga, ajuda a compor o “clima” das atividades elitistas descritas, com a fluidez de uma História em certos aspectos, até literária, o que ajuda sobremaneira na leitura da obra. Tal procedimento não pode, no entanto, ser confundido com um artifício comercial empobrecedor da análise, como já comprovaram as qualidades de inúmeros estudos históricos relacionados a essa mesma opção metodológica. Aliás, a não inclusão de recursos visuais no texto, salvo as ilustrações que ornam a capa da obra, nos parece ser uma declaração clara no sentido de reafirmá-la enquanto estudo histórico acadêmico e não como texto oportunístico dedicado à reafirmação de símbolos turísticos de fácil apelo e exploração econômica. Ao leitor atento chamará a atenção, no entanto, o fato de que o título do livro faça menção explícita a uma Pré-história e não propriamente a uma História do turismo. Isso se justifica pelo fato de que, por ser uma obra com proposições inovadoras no que tange a seu objeto de pesquisa, o autor se vê preso à difícil tarefa de organizar as bases fundamentais de sua discussão e estabelecer os conceitos primordiais envolvidos em suas análises. Por isso, muito mais do que abordar a gênese de um fenômeno histórico, o autor também apresenta as “razões de um não turismo”, no âmbito de seu recorte regional e temporal, notadamente a colônia brasileira transformada em sede do reino português, durante a primeira metade do século XIX. Assim, longe de render-se a fáceis associações entre os “lazeres burgueses” ou as “recreações aristocráticas” e o comportamento turístico moderno, saída que normalmente seduziria historiadores menos habilidosos e com menor domínio da informação disponível, Haroldo Camargo apresenta um processo não linear, onde convivem diferentes agentes e tendências que formam um contexto histórico dinâmico e, por vezes, contraditório. Nesse sentido, se por um lado, a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, trouxe consigo uma série de novos hábitos relacionados com recreações e viagens dos estratos aristocráticos e outros a eles diretamente associados, anteriormente ausentes do universo colonial; por outro, esse movimento se deu no interior um contexto sócio-econômico distinto daquele presente na Europa. Desse modo, o autor apresenta como as práticas da vilegiatura, das estâncias termais e hidrominerais e dos balneários marítimos, foram estabelecidas como parte de um processo mais amplo cujo objetivo principal era a europeização da antiga colônia. Também não são esquecidas práticas mais cotidianas como a caça, os jogos, a música e o teatro, assim como o início da transformação do ambiente tropical em paisagem contemplativa e como espaço de recreação e de lazer, através das análises da Floresta da Tijuca, do Jardim Botânico e do Corcovado. Aliás, a escolha da cidade do Rio de Janeiro como uma espécie de estudo de caso, pelo autor, apesar de tornar-se quase obrigatória frente à associação direta entre as práticas descritas e a camada social aristocrática radicada naquela localidade, não deixa de ser um importante instrumento de aproximação entre a interpretação histórica tratada e o leitor contemporâneo, uma vez que esses elementos paisagísticos são reconhecidamente sinônimos de pontos turísticos e exemplos já clássicos de cartões postais, tanto no Brasil quanto no exterior. Por outro lado, a carência de uma infra-estrutura local, inclusive no que se refere aos equipamentos básicos de deslocamento como estradas carroçáveis e embarcações com instalações mínimas de conforto, além de equipamentos de serviços relacionados à hospedagem e à alimentação, é destrinchada pelo autor e revela a enorme distância existente entre aqueles “viajantes” e os futuros “turistas”. Papel de destaque é destinado à escravidão, elemento fundamental daquela sociedade que, apesar de ter sido incorporada como parte integrante da cadeia operatória envolvida nos processos de deslocamento e de serviços, é apontada como a principal causa para a manutenção de um tempo “tradicional”, em oposição a um tempo “industrial”, tão avesso às normas sociais do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, outro elemento importante muito bem lembrado e associado, pelo autor, à economia das trocas simbólicas de Pierre Bourdieu. Assim, nem tanto um problema logístico ou de simples “atraso econômico”, a questão perpassa, na interpretação de Haroldo Camargo, pelo que poderíamos qualificar como a permanência de uma “mentalidade colonial” que resiste e sobrepuja, pelo menos até 1850, não sem motivo o outro limite cronológico estabelecido pela pesquisa, aos avanços dos então recentes “modismos” aristocráticos. Como todo trabalho histórico, Uma Pré-história do Turismo no Brasil, não analisa todos os ângulos possíveis relacionados com a temática proposta e deixa uma séria de novos questionamentos em aberto. Tal observação é uma medida do sucesso, e não do fracasso da obra, que não apenas atingiu seu objetivo, mas também faz com que o leitor reflita sobre o tema e comece a tecer suas próprias conjecturas, o que é, acreditamos, a maior satisfação que pode ter o profissional da área. Também, fica a busca pela conclusão do processo histórico cujos fundamentos foram ali, tão bem expostos, mas que só encontrariam condições plenas de desenvolvimento, como indica o autor, no contexto de uma nova ordem social regida por um capitalismo nascente, fazedor de mercados, e da nova ética do trabalho daí surgida. Nesse sentido, o livro pede a continuidade das reflexões iniciadas, quiçá com a produção de um segundo volume, dessa vez dedicado a Uma História do Turismo no Brasil. -------------------------------------------------------------------------------- [1 Mestre em História pela FFLCH e Doutor em Arqueologia pelo MAE/USP, é pesquisador do Ceans/NEE/Unicamp. fonte: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=resenhas&id=28

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